Imagine um grupo de crianças que mora em uma favela. Imagine outro grupo de crianças que mora num apartamento de classe média. Peça que cada um faça um filme sobre como eles projetam a vida do outro grupo. Depois, faça a exibição dos dois filmes para todos a fim de que as narrativas sejam compartilhadas. Essa é a premissa de “O Outro Lado do Outro”, documentário de Rita de Cácia Oenning da Silva e Jurt Shaw.
Rita é doutora em antropologia pela Universidade federal de Santa Catarina e trabalha com populações em condições de exclusão social. Kurt é formado em filosofia pela Universidade de Harvard e já ganhou prêmios humanitários por seu trabalho com crianças de periferia. É importante conhecermos o currículo dos diretores para que possamos ter uma dimensão do que o filme representa.
Muito além de um simples exercício de imaginação sobre a vida alheia, “O Outro Lado do Outro” é uma terapia de afetos e empatia. “Eles têm medo da favela porque vivem no luxo e com tudo do bom e do melhor. Nós aqui somos capachos!” A frase é de uma criança que passa a vida olhando para as janelas do condomínio de classe média, sem ter as mesmas oportunidades do que as crianças que já nascem com o privilégio de classe social.
Claro que as percepções dos pequenos são carregadas de estereótipos. Veja só: “Eles não têm muito dinheiro e comida. Às vezes precisam até trabalhar um pouco para ganhar dinheiro e ajudar os pais”, diz uma das meninas do condomínio sobre as crianças da favela. Evidentemente que as condições de um grupo são favoráveis e a do outro não, mas essa leitura estereotipada sobre as crianças da favela é decorrente de décadas de produções culturais brasileiras enviesadas. Qual a participação que nossos filmes e nossas novelas têm na criação desse imaginário infantil? Como nós, criadores de conteúdo audiovisual, contribuímos para essa segregação social?
É interessante observar que as narrativas das crianças dos dois grupos são parecidas. Ainda que uma explore mais temas como racismo e violência, ambas preocupam-se com o protagonismo das crianças sobre sua própria infância. “O filho é o único certo da história, porque o pai só pensa em dinheiro e aqui não pensamos no dinheiro. Dinheiro não compra felicidade nem amor. E aqui temos isso nas nossas brincadeiras”.
Quem disse a frase acima foi Wilhamis Gaudino, de apenas 10 anos. O garoto fica radiante com o projeto. Ele mora na favela e está preocupado com as crianças do condomínio que têm videogame, celular, roupa de marca mas não têm felicidade. “Eu queria que eles fossem felizes como a gente é. Queria que fossem sozinhos pra praia como a gente vai, correndo feito bicho solto. Temos que fazer essa revolução!” O discurso de Wilhamis poderia ser atribuído a qualquer filósofo ou sociólogo progressista nos últimos 200 anos. Ele está preocupado com a revolução! Para a ciência política, revolução é um movimento de revolta contra um poder pré-estabelecido e que visa, essencialmente, promover mudanças profundas na sociedade. Para o dicionário, o verbo revoltar, transitivo direto, significa indignar-se.
Pensando bem, até que não seria má ideia colocar nossas possibilidades de futuro nas mãos das crianças… Viva a Revolução das Crianças.