“Ao olhar para a política pública, vemos que tivemos muito pouco. O cinema infantil, até hoje, não foi encarado como algo estratégico”, diz a criadora da tradicional Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis, Luiza Lins, em matéria publicada pela Carta Capital (24/10/2024). Leia abaixo o texto completo.
Na quinta-feira 17, quase mil crianças – 522 delas da rede municipal de ensino – participaram da abertura da 1ª Mostrinha, na Sala São Paulo, no bairro da Luz, região central da cidade. Elas chegaram em ônibus fretados, comeram pipoca, assistiram à animação Arca de Noé e conversaram com Sérgio Machado, diretor do filme, e com os atores Rodrigo Santoro e Alice Braga, dubladores de dois dos ratinhos protagonistas.
Se, em sua 49ª edição, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, um dos maiores eventos audiovisuais da América Latina, apresenta uma seleção especial de produções infantojuvenis é porque, como diz Renata Almeida, diretora do evento, cinema é hábito. E hábitos, sabemos, enraízam-se cedo.
“Não podemos falar em formação de público sem olhar para a infância e a adolescência. Quem não vê um filme brasileiro, ou de outras nacionalidades além da norte-americana, nessa fase da vida, vai ver quando for adulto?”, pergunta Renata.
Tal pergunta ganha especial relevância no contexto pós-2019, marcado pela pandemia, que manteve o circuito de exibição fechado, e pelo lançamento dos serviços de streaming dos estúdios hollywoodianos. Embora, desde então, também o cinema estrangeiro tenha vivido uma grande queda de público, o ritmo de sua recuperação é incomparável ao do brasileiro.
Animação Arca de Noé, de Sérgio Machado.
De acordo com a Agência Nacional do Cinema (Ancine), enquanto a bilheteria dos filmes estrangeiros – notadamente, a dos blockbusters – foi, em 2023, 28,6% menor do que em 2019, a dos longas-metragens brasileiros foi 84,6% menor. Cabe observar que, até agora, os dois títulos mais vistos do ano foram animações: Divertidamente 2, com 22 milhões de espectadores, e Meu Malvado Favorito 4, com 7,7 milhões.
Não à toa, em meio às reflexões do setor sobre as razões e soluções para esta crise de público, começa a surgir, aqui e ali, um olhar para a produção infantil.
Fabiano Gullane, produtor de Arca de Noé, afirma, um pouco para os outros, um pouco para si, que esta é uma questão que diz respeito a todo o cinema brasileiro:
“Nós, que realizamos filmes, temos de estar ligados na importância de nos dedicarmos a obras voltadas às gerações mais novas. Não estamos dando a devida atenção a esse mercado e, sem ele, quem vai ver nossos filmes daqui a 20 anos?”
“Não damos a devida atenção a esse mercado. Quem vai ver nossos filmes daqui a 20 anos?”, pergunta Gullane
Durante a entrevista, o produtor recordou-se, por exemplo, do quanto Os Saltimbancos Trapalhões (1981) o marcou. E contou também que Arca de Noé, vendido para 69 países – uma das maiores vendas internacionais de um filme brasileiro –, foi feito para competir com os infantis em língua inglesa.
Rosane Svartman, uma das criadoras de Malhação (1995-2020) e diretora de Pluft, o Fantasminha (2022), faz eco à fala de Gullane, observando que o próprio mercado tende a colocar a produção infantil num escaninho de menos prestígio – e, por consequência, de menos recursos.
“O conteúdo infantojuvenil é visto como menos nobre, menos sofisticado. Existem menos oportunidades de produção e menos possibilidades de exibição. Eu, realmente, me pergunto por que é assim”, diz ela. “Deveria ser o contrário, porque esse cinema é a porta de entrada para as histórias brasileiras, e faz parte da reconstrução da cultura de ir ao cinema.”
Desde a pandemia, levar o público para ver filmes infantis brasileiros também se tornou mais difícil. A Imagem, a mesma distribuidora que colocará Arca de Noé nos cinemas, em 7 de novembro, lançou, na quinta-feira 17, Perfekta – Uma Aventura da Escola de Gênios, baseado na série do Gloob. O filme fez apenas 15.824 espectadores no fim de semana de estreia.
Antes, a transposição de produtos televisivos para o cinema era uma fórmula que tendia a dar certo. Na primeira década dos anos 2000, os dois filmes derivados da novela Carrossel (2015 e 2016) venderam 2,5 milhões de ingressos cada um, e os de D.P.A. – Detetives do Prédio Azul (2017 e 2019), mais de 1 milhão.
Outro sucesso dessa década foi Turma da Mônica – Laços (2019), baseado nos quadrinhos de Mauricio de Sousa. Tampouco se pode esquecer, nessa década, O Menino e o Mundo (2103), de Alê Abreu, vendido para mais de 80 países.
A partir de 2020, no entanto, nem D.P.A. 3 – Uma Aventura do Fim do Mundo nem Turma da Mônica – Lições conseguiram manter o desempenho anterior. Refletindo a mudança no hábito e na forma de se consumir filmes, ambos ficaram abaixo do 1 milhão de ingressos. Ao mesmo tempo, chama atenção o fato de, em 2022, três das dez maiores bilheterias do cinema brasileiro terem sido de produções para crianças: D.P.A., Turma da Mônica e Pluft, o Fantasminha.
O sucesso, diga-se, marcou em vários momentos a história do cinema infantojuvenil brasileiro. Aos dois primeiros longas-metragens infantis do País, Sinfonia Amazônica (1952) e O Saci (1953), se seguiu, na década seguinte, um fenômeno que marcaria esse segmento: Os Trapalhões.
Como escreve o pesquisador João Batista de Melo no livro Lanterna Mágica: Infância e Cinema Infantil, os filmes protagonizados por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias lideraram as bilheterias do País pelas duas décadas seguintes, tendo gerado mais de 40 títulos.
O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão (1977) ainda ocupa o décimo lugar no ranking dos filmes brasileiros mais vistos e, como notou o pesquisador, dos cem primeiros filmes da lista de maiores bilheterias da Ancine, 35 são infantis. Os Trapalhões foram sucedidos, na década de 1990 e início dos anos 2000, pelas produções da Xuxa.
Mas, mesmo sob o reinado da Xuxa, houve brechas para outros experimentos estéticos, como Tainá: Uma Aventura na Amazônia (2000) e Castelo Rá-Tim-Bum (1999). Cao Hamburger, que apresentou, na 1ª Mostrinha, uma sessão comemorativa dos 25 anos de Castelo Rá-Tim-Bum, na Cinemateca Brasileira, diz que, ao olhar para trás no tempo, vê um cenário absolutamente diverso.
“Lembro que, quando íamos lançar o Castelo, tinha muito filme infantil estreando. Um deles era Pokémon. E tinha também muito produto para criança na tevê, algo que não tem mais”, diz o cineasta. “O cenário mudou da água para o vinho. A TV Cultura, naquele momento, teve um papel importante. E, quando pensamos na tevê aberta, temos de lembrar da lei que regulou a publicidade de produtos infantis.”
Outra fase teria início com a Lei 12.485, de 2011, que estabeleceu cotas de conteúdo brasileiro na televisão por assinatura e ampliou os recursos disponíveis para a produção. A tevê paga abrigou programas que acabaram por chegar também aos cinemas, como Peixonauta (2018) e Meu Amigãozão (2022).
Beth Carmona, que dirigiu a TV Cultura no auge da programação infantil do canal e organiza o festival ComKids, sempre diz: não se pode falar do mercado infantojuvenil sem se levar em conta a televisão.
Mas tampouco se pode pensar no desenvolvimento sistemático desse mercado, como repete, há alguns anos, Luiza Lins, sem políticas públicas específicas. “Ao olhar para a política pública, vemos que tivemos muito pouco. O cinema infantil, até hoje, não foi encarado como algo estratégico”, diz a criadora da tradicional Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis, que se encerrou no sábado 19.
Karen Castanho, sócia da Biônica, que produz os filmes da Turma da Mônica, também defende apoios específicos. Ela lembra, inclusive, que a produção infantojuvenil tem limitações ligadas à inserção de marcas – devido à regulação da publicidade para esse público – e, no caso de live action, ao tempo em que uma criança pode trabalhar no set, limitado a seis horas.
“Isso significa que, no roteiro, preciso prever a utilização das horas restantes em uma diária pelo elenco adulto. E, de qualquer maneira, sempre vou precisar de mais tempo para rodar um filme infantil que um filme adulto”, detalha.
Além disso, observa Karen, é fundamental que uma produção infantil, primeiro, “não subestime o gosto da criança” e, depois, “tenha um acabamento e um roteiro que levem em conta o adulto que estará com ela”.
Karen, quanto instada a falar sobre o que os dois primeiros filmes da Turma da Mônica – o próximo, Chico Bento, estreia em janeiro de 2025 – significaram para a produtora, diz: “Eles nos deram a oportunidade de falar com um público amplo, sem ser por meio de uma comédia, e de trabalhar com a formação de público. Somos uma produtora que vive de cinema, então dependemos disso”.
Luiza Lins, ao longo dos 23 anos de Mostra, sempre sentiu que, embora desperte alguma simpatia, esse tema nunca é de fato abraçado pelo setor audiovisual. “Acho que ainda existe uma visão de que o cinema infantil é uma coisa menor. Mas hoje todos sabemos que o Brasil tem muita produção que não chega nunca ao público”, pondera. “Esse público precisa ser formado, e isso só vai acontecer se houver um trabalho conjunto com a educação.”
Ao começar a fazer o evento, ela entendeu que não bastava promover sessões gratuitas: era preciso mobilizar os professores das escolas, e oferecer ônibus. Luiza lembra que está em fase de regulamentação, no País, a Lei nº 13.006/2014, que prevê que as crianças tenham acesso, na escola, a duas horas de cinema brasileiro por mês. Sua efetivação, no entanto, também dependerá da formação de professores.
O caminho é longo. Mas, ao menos, parece haver gente disposta a trilhá-lo.